Visão, uma função orgânica bem complexa, pode ser simplificadamente descrita como a reprodução mental e imaginária (subjetiva) de objetos (pessoas ou coisas) situados no espaço à frente dos olhos. Uma das consequências dos diferentes arranjos que a possibilitam é a de que as imagens dos variados objetos não são percebidas com a mesma qualidade. O objeto que requer a atenção visual, isto é, aquele cuja imagem precisa ser vista com a máxima qualidade (contornos, texturas, cores, etc.) deve ter sua imagem formada, precisamente, no “centro” da retina (a delicada membrana no fundo do olho, capacitada a iniciar o processo visual). Nessa condição, o objeto que se quer “ver” (o de “atenção visual”) fica “bem à frente” do olho. E é também por isso que o olho precisa se mover, para se ajustar à direção do espaço em que está localizado o objeto (cuja respectiva imagem precisa ser a melhor). A tal direcionamento, em que o objeto que se quer ver fica precisamente, à frente do olho, chama-se olhar. Ou seja, olhar é a capacidade de mover o olho para melhor ver o objeto que chama a “atenção visual”.
Uma boa pergunta é a de “por que temos dois olhos, se podemos ver o mundo com apenas um?” A resposta mais lógica pareceria ser a de que dois olhos aumentam o “espaço visual”. Por exemplo, os de coelhos ou cavalos (em posições laterais das respectivas cabeças), possibilitam a cobertura visual de um espaço de 360° ao redor desses animais. O que não é o caso do homem e de antropoides. Neles, com a frontalização dos olhos, que se diz devida à evolução filogenética, o espaço visual percebido pelos dois olhos (cerca de 180°) é, efetivamente, maior do que o de um deles (pouco mais do que 90°, porque o nariz impede que o olho direito enxergue “bem à esquerda”; ou que o esquerdo enxergue “bem à direita”). De qualquer modo, pela “frontalização ocular” ocorrem perdas, pelasmenores extensões do “campo visual” (binocular). A resposta, também, não seria pela prevenção da cegueira, na perda do olho (se fosse único); por esse motivo, deveríamos ter uma suplência de olhos ainda maior.
Na verdade, a superposição de campos visuais, como a dos humanos, possibilita que ambos os olhos, simultaneamente, olhem o mesmo objeto de atenção visual. Essa conjunção binocular faculta que o distanciamento do objeto em relação à pessoa que o vê (a chamada “distância egocêntrica”) seja melhor percebido, o objeto é apresentado com uma nova dimensão, a de “profundidade” do campo visual, a estereopsia. Em outras palavras, esse arranjo possibilita a visão tridimensional do objeto (relevos e cavos) e a do espaço que lhe é imediatamente circundante (*1). Em consideração rigorosa, a visão monocular é, apenas, bidimensional, ou seja, a de um único plano. (A noção de que, em um plano — como o de uma fotografia, o da pintura de uma paisagem, o de uma tela de TV, etc. —um objeto se situe mais próximo, ou distante de que o observa, fundamenta-se em considerações aprendidas sobre suas formas e tamanhos, relativizados a outros já conhecidos, linhas de perspectiva, nitidez de delineamentos, distribuição de cores, brilhos e sombras e outras das chamadas “pistas monoculares” das distâncias egocêntricas, não representa uma estereopsia genuína.)
Estrabismo e suas consequências
Desde que estabelecido o modo sobre como “vemos”, isto é, “olhando”, dirigindo, simultaneamente, a “frente” de cada um dos olhos a um objeto (de atenção visual); e sabendo a razão pela qual a natureza nos provê essas condições (a percepção estereoscópica desse objeto, relativamente a outros, também “vistos” — embora não “olhados”), podemos definir o estrabismo como a má circunstância em que essas necessidades não são atendidas. Em outras palavras, estrabismo(olhos vesgos, “tortos”, “desviados”) pode ser simplificadamente definido como a falta de simultaneidade de direcionamento dos olhares, ao mesmo ponto de atenção visual.
Obviamente, a primeira consequência disso é o distúrbio fisionômico acarretado ao estrábico. Um dos olhos de Maria (estrábica) “aponta” para José, enquanto o outro “aponta” para João. Embora Maria saiba para quem “olha”, tanto João como José, além de quaisquer outros circundantes, não sabem… O “olhar” de Maria é constrangedor, é “anormal”, Maria é “feia”.
Uma segunda consequência é a de que Maria não tem estereopsia, não tem boa visão binocular.
Mas há, ainda, uma possível terceira consequência, menos direta, mas relativa à causa do próprio estrabismo. E essa terceira consequência é a de que a própria visão de um dos olhos pode estar muito prejudicada.
Estrabismo e suas causas
O mau direcionamento de um dos olhares, ou de ambos, tem dois fundamentos principais:
1) A má visão de um, ou de ambos os olhos.
Realmente, pelo simples fato de a visão de um dos olhos não poder ser provida — quer por perdas de transparência dos meios ópticos do olho (leucomas de córnea, cataratas, opacidades do corpo vítreo), quer por lesões da retina (coriorretinites), ou do nervo óptico (neurites, atrofias) — faltarão as informações de como o correto direcionamento ocular ao objeto de atenção visual (o “olhar”) possa ser conseguido. Uma dessas lesões, causando um defeito primário da visão, o retinoblatoma (uma neoplasia maligna da retina, embrionária) pode ter no estrabismo a sua primeira manifestação.
2) O defeito de ação dos músculos oculares responsáveis pelo olhar.
Dos doze pares de nervos craniais, três são exclusivamente reservados à movimentação ocular: o III (motor ocular comum, ou oculomotor, que aciona os músculos reto medial, reto superior, reto inferior e oblíquo inferior), o IV (troclear, ou patético, responsável pela inervação do músculo oblíquo superior) e o VI (motor ocular externo, ou abducente, que comanda respostas do músculo reto lateral). Tanto o IV, por seu grande comprimento, quanto o VI, por suas disposições anatômicas, são muito frequentemente comprometidos em traumas cranioencefálicos. Mas seja por insuficiência de ação (paralisia, a completa ausência de inervação; ou paresia, perda parcial do estímulo neural), seja por excesso (irritações dos núcleos dos nervos oculomotores), as respostas inadequadas dos músculos oculares externos produzem estrabismos. A causa desses distúrbios neurais pode ser gravíssima, trazendo risco iminente de morte ao paciente (tumores cerebrais, meningites, abiotrofias). O estrabismo então aparece como um sinal precoce e provável delas. Muitas vezes, entretanto, estrabismos em adultos de idade mais avançada (e principalmente em hipertensos e diabéticos) decorrem de (supostamente) acidentes vasculares mínimos, não detectáveis em exames de imagens do conteúdo cranial. Assim, apesar de o mecanismo causal ser conhecido (o desequilíbrio de estímulos de comando aos diversos músculos oculares externos) a exata localização do defeito mantém-se ignorada.
Obviamente, a ação dos músculos oculares externos pode estar também prejudicada (geralmente reduções) por afecções deles próprios (miosites, fibroses); ou pelas membranas que os envolvem (perdas de elasticidade, por fibrose, cicatrizações viciosas); ou por encarceramentos (preensões) deles nas fraturas das paredes orbitárias, ou por tumores (intraorbitários).
As relativamente grandes quantidades de nervos oculomotores (três pares) e de músculos oculares externos por eles acionados (seis em cada olho), parecem bem explicadas pela enorme diversidade de demandas dos olhares. De fato, o número delas e de seus respectivos ajustamentos é, tecnicamente considerando, infinito. Pois os dois olhares devem se ajustar, adequadamente, a objetos situados à direita, ou à esquerda, acima, ou abaixo, ou aos quatro quadrantes do campo oculomotor (à direita e acima, à direita e abaixo, à esquerda e acima, à esquerda e abaixo) em diferentes direções (iguais, ou não) e distâncias (iguais, ou não), para satisfazer a conveniência de se entrecruzarem exatamente sobre o ponto “olhado”. Essa multiplicidade de demandas torna o sistema muito exigido e, pois, vulnerável, sujeito a imperfeições nas respostas.
Por outro lado, o próprio sistema oculomotor é autorregulado pelas chamadas vergêncais fusionais, isto é, ocorrem respostas complementares (de origem “sensorial”, pela retina) de ajustamento dos olhares (“fusão binocular”) quando seus corretos direcionamentos não forem apropriadamente feitos pelos “simples” comandos “oculomotores” (originais).
Uma das causas mais comuns de excesso de estimulação é a que se faz aos músculos retos mediais, induzindo-lhe as respectivas contrações, das quais resulta convergência excessiva (e, pois, estrabismos convergentes), simplesmente determinada pelo mecanismo da acomodação. Esse mecanismo da acomodação é normalmente acionado para a compensação de hipermetropias (muito comuns) e nos olhares para perto (leitura, escrita).
Estrabismo, tipos e a época de seu aparecimento
Há diferentes classificações para os estrabismos, conforme o critério escolhido:
1) Quanto ao olhar:
A) Monoculares, quando apenas um olho é o desviado, enquanto o outro é o único a comandar, constantemente, o “olhar”.
B) Alternantes, quando o olhar a um objeto de atenção visual pode ser trocado.
2) Quanto à direção:
A) Horizontais: convergentes (ou esotropias) e divergentes (ou exotropias).
B) Verticais e monoculares: hipertropias (se o olho desviado for o mais “alto”) e hipotropias (se o desviado for o mais “baixo”).
C) Verticais e alternantes: desvio D/E ou E/D.
D) Desvio vertical dissociado: hipertropia de olhos alternados (*2)
3) Quanto ao tempo (constância)
A) Permanentes.
B) Intermitentes.
4) Quanto à época de aparecimento
A) No adulto.
B) Na criança.
Esta última (a da época em que o estrabismo se manifesta) é uma das classificações mais importantes em clínica.
Surgindo no adulto, o estrabismo tem o significado de uma causa grave, pelo menos em princípio: ou de perda de visão em um dos olhos (ou ambos); ou de afecções orbitárias (fraturas, tumores, intumescências musculares, como a da doença de Basedow-Graves), ou, ainda, de afecções neurológicas (Miastenia grave, tumores, esclerose múltipla, etc.).
Quando o estrabismo não se dá por perdas visuais, a queixa não é de que os olhos estão “tortos”, desfigurando a fisionomia (às vezes o desvio dos olhares nem é notado), mas de visão “atrapalhada”. A leitura, por exemplo, torna-se impossível (a não ser que um dos olhos seja conscientemente fechado). Esbarrões e quedas tornam-se frequentes. Essas ocorrências se dão pela diplopia (a duplicação de imagens dos objetos, pois as direções dos olhares são díspares) e a decorrente confusão (a superposição mental dessas imagens díspares).
Na criança, são relativamente frequentes os estrabismos convergentes da primeira infância. Costumeiramente chamados “congênitos” (embora só apareçam semanas ou meses após o nascimento), alguns são relacionados a defeitos de formação neural, afetando outras funções cerebrais (daí, associações com retardos do desenvolvimento neuropsicomotor) enquanto outros não as comprometem. Obviamente, queixas de “atrapalhação” visual inexistem nessas idades, mesmo porque o sistema sensorial visual nem sequer se desenvolveu. E, aliás, justamente para evitar a ocorrência da diplopia e confusão, prevalece a supressão das imagens enviadas pelo olho desviado (para não “atrapalhar” as do que “vê”).
Como o cérebro desenvolve na criança a capacidade de “ficar de pé”, seguida da de “andar”, depois “correr” e, adiante, “driblar e, ou dançar”; assim como a de aprender, progressivamente, expressões e construções de uma língua, a de tocar violino, ou piano, etc., também usa o “treino” para aprender a ver. Se o desenvolvimento das chamadas “competências neuronais” correspondentes não for devidamente realizado, no tempo certo (o que geralmente corresponde a um “período crítico”, de duração relativamente curta, primeiros anos de vida), a função a ser “treinada”, não se desenvolve. É o que ocorre na criança, com um estrabismo monocular: apesar de o olho permanentemente desviado ser organicamente normal, fica sem “aprender a ver”, torna-se amblíope. Nessa ambliopia, se o devido tratamento não for precocemente instituído, as perdas visuais (na verdade, a falta de ganho) tornam-se irreversíveis.
Entre dois e quatro anos de idade, o aparecimento de um estrabismo convergente é, quase sempre, relacionado ao uso da acomodação, o mecanismo natural de ajustamento da visão para ver bem a distâncias próximas, ou para compensação das hipermetropias. A simples correção óptica da acomodação (uso de óculos) é suficiente para a correção do estrabismo. Entretanto, apesar dessa facilidade do tratamento, se ele não for prontamente instituído, todo um cortejo de problemas pode se consolidar: não só quanto à visão (pelo eventual desenvolvimento da ambliopia), quanto, para a correção do estrabismo: cirurgias tornam-se necessárias para corrigir as adaptações musculares ao estado de desvio (encurtamentos, distensões).
Em idades maiores, o aparecimento de estrabismos tem o significado dos de adultos, isto é, as causas prováveis são, costumeiramente, de maiores gravidades.
Também relativamente comuns em crianças são os estrabismos divergentes. Nestes casos, dispondo de um mecanismo natural de compensação (a convergência ocular), muitos desses estrabismos são neutralizados pela própria criança, pelo menos em parte do tempo. Descreve-se então aquilo que se conhece como uma exotropia intermitente, isto é, com fases de estrabismo intercaladas às de sua ausência. Tratamentos clínicos (óculos, uso de tampões em um dos olhos) ou cirurgias são os tratamentos.
Posições viciosas de cabeça, isto é, cabeças inclinadas para um dos ombros (torcicolos), ou giradas para um dos lados, ou muito abaixadas (posições “depressivas”), ou elevadas (posições “altivas”) representam, geralmente, mecanismos de defesa a um estrabismo. De fato, nesse casos os estrabismos apresentam grandes variações de tamanho: mostram-se grandes em uma posição do olhar e pequenos (ou nulos) na oposta, que é então adotada para olhar. (Nessa posição da cabeça não há qualquer estrabismo, mas na oposta o desvio se torna bem evidente).Obviamente, apesar de parecer um problema “do pescoço” (coluna, músculos do pescoço), a causa é oftalmológica e deve ser tratada por um especialista em estrabismo.
Resumo
1) Estrabismos são distúrbios fisionômicos que, por eles próprios, como fatores de rejeição, levam a problemas psicológicos (perdas da autoestima e timidez, dificuldades de relacionamento social, etc.).
2) Mas, sobretudo, todos os estrabismos são acompanhados de perdas da visão binocular normal.
3) Em grande parte deles a visão de um dos olhos (ou de ambos!) pode estar também prejudicada, seja como a própria causa do estrabismo (lesões oculares), ou como sua consequência (ambliopia).
4) O exame das causas do estrabismo é sempre fundamental pois, em vários casos, elas são de risco à própria sobrevivência da pessoa.
5) Por isso, tanto para a elucidação dessas causas e possíveis providências, quanto para a eventual prevenção e, ou recuperação de perdas visuais decorrentes do próprio estrabismo, a precocidade do exame e a instituição de terapêuticas adequadas são de máxima necessidade.
6) Enfim, aparecimentos de estrabismo devem ser entendidos como urgências para atendimentos.
7) Posições viciosa de cabeça são, muito frequentemente, causadas por estrabismos (estrabismo “sem estrabismo” naquela circunstância).
Artigo por:
Harley E. A. Bicas (*) – CRM 10575
Professor Titular Senior – Oftalmologia
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo
Instituto da Visão de Ribeirão Preto
Ex-Presidente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO)
Ex-Presidente do Conselho Latino-Americano de Estrabismo (CLADE)
heabicas@fmrp.usp.br
NOTAS DE RODAPÉ:
- Esse processo de “medição” da distância de um ponto a partir da de dois outros referenciais (dois “pontos de vista”), na verdade, a medição de um ângulo, é a base da ciência trigonométrica, com vastas aplicações (como, por exemplo, a da agrimensura). ↩︎
- Curiosamente, o Desvio vertical dissociado “para baixo” (hipotropia de olhos alternados) pode ocorrer, mas não é clinicamente observado. Assim, também, desvios torcionais (em torno do eixo longitudinal) puros, são teoricamente possíveis, mas não encontrados. Mas os associados a desvios verticais são relativamente comuns. ↩︎
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